"Ser cobaia humana virou uma profissão", diz pesquisador


Entrevista

"Ser cobaia humana virou uma profissão", diz pesquisador

Roberto Abadie, autor de The Professional Guinea Pig, revela os bastidores do mundo das cobaias humanas

Aretha Yarak
Roberto Abadie
(Arquivo Pessoal)
"Uma cobaia é um animal. Só por eles se referirem a si mesmos como cobaias já denuncia uma certa animalização, uma desumanização durante os testes."
Em 1998, depois de um ano fazendo mestrado em Quebec, no Canadá, o uruguaio Roberto Abadie acabou sucumbindo à saudade de sua terra natal. A viagem de volta para casa, no entanto, não seria tão simples. Com o dinheiro contado, ele precisaria de um bico para conseguir comprar as passagens. Foi então que, seduzido por diversos anúncios na TV e nos jornais, que clamavam por homens saudáveis em busca de dinheiro, Abadie acabou se tornando uma cobaia humana, uma pessoa que serve de plataforma de testes para novos remédios da indústria farmacêutica. Ele se submeteu a somente duas experiências, que lhe renderam cerca de 1.000 dólares. Mas ganhou vivência para escrever o livro The Professional Guinea Pig (sem edição em português), que acaba de ser publicado nos Estados Unidos e Inglaterra. A obra é um verdadeiro documento sobre a profissionalização doguinea pig (termo em inglês para cobaia humana - no Brasil, a prática é proibida) e como a indústria farmacêutica americana tira proveito das pessoas que se submetem aos testes. Abadie conheceu drogados e pessoas com problemas mentais, gente que, por lei, não poderia ser cobaia. Mas que é usada pelas empresas mesmo assim.
Abadie passou ileso pelos testes, e hoje, aos 42 anos, é doutor em antropologia e pesquisador visitante no Health Science Doctoral Program, da Universidade de Nova York. Poliglota – fala inglês, francês, português e espanhol, ele conta, em entrevista a VEJA.com, como é feito o recrutamento dos “voluntários”  e os detalhes da rotina de um guinea pig: dezenas de agulhadas e muitas vezes efeitos colaterais terríveis, em troca de um punhado de dólares.
Por que você se tornou um cobaia humana?

Não me definiria como um cobaia humana. Eu tive apenas duas participações, que foram mais ao acaso. Estava em Quebec fazendo meu mestrado, contando com uma pequena bolsa do governo para me sustentar. Eu queria voltar para casa, mas precisava de dinheiro. Sempre via no rádio e nos jornais anúncios que diziam coisas como “Você, jovem, sadio, não fumante e que não usa drogas ou faz uso de medicações, com tempo livre, faça parte da nossa pesquisa”. Tinha até mesmo um símbolo do dólar estampado junto. Não sabia se poderia participar, porque tinha visto de estudante, mas acabei descobrindo por um amigo argentino que poderia. Então, liguei para o anúncio e topei participar. Fiz exames de urina, de sangue e cardiograma. É tudo muito esquisito, na verdade. A pessoa fica em um espaço amplo, com beliches e outras 20 pessoas e recebe sanduíches e refrigerante. Mas não há um padrão. Ali, haviam desempregados, moradores de rua, artistas, estudantes, alcoólatras, drogados e pessoas com problemas mentais. Mas eu estava ali apenas pelo dinheiro.
Quais drogas você tomou?

Uma era para gastrite e a outra para abrir o apetite em pessoas com câncer. Não me recordo dos nomes exatos.
Quanto foi pago por cada teste?

Recebi 300 ou 400 na primeira e 600 ou 700 na segunda. Era uma mixaria, na verdade, eles pagam muito pouco. A grande questão é que em Quebec o custo de vida é mais baixo que em cidades como Nova York, Filadélfia ou qualquer outra da costa leste americana. Então, os testes acabam sendo feitos ali. Foi a forma que o governo local e as indústrias de testes farmacêuticos encontraram de continuar competitivos no mercado. Com os custos operativos menores, eles atraem mais testes para o país. A província de Quebec é um verdadeiro nicho de experimentos de fase 1 [primeiros testes realizados em humanos, em grupos de até 30 pessoas, para aferir apenas a toxicidade da droga].
Como funciona o pagamento de uma cobaia humana?

É um ponto crítico, na verdade. A indústria depende dos profissionais, cobaias para testar a toxicidade das drogas, porque é preciso assegurar que a substância não é nociva para seres humanos. É possível ganhar até 400 dólares por dia. Algumas pessoas dizem que é viciante ser um cobaia.
Para conseguir uma quantia grande de dinheiro os testes precisam ser feitos em paralelo ou até simultaneamente. Isso não é proibido?

Em teoria sim. O intervalo entre eles deveria ser de, no mínimo, um mês, mas não há um registro da participação. Ninguém sabe se o sujeito está saindo de um teste e indo para outro direto. Claro que há exames de sangue e urina e, caso alguma coisa anormal seja detectada, ele vai ser barrado. Mas há muito casos de pessoas que fazem diversos testes simultaneamente.
Não existe um registro central coordenado pelo governo?

Não. Mas o pior é que a indústria farmacêutica também não tem. Eles têm dados como email, endereço, nome e informações usuais de credenciamento porque precisam saber quem é a cobaia que está sendo recrutada. A base de dados deles é mais voltada para marketing e recrutamento. Eles não sabem, no entanto, quantos experimentos cada sujeito já fez com eles ou a frequência da participação. É ciência sim, mas é também um negócio lucrativo para a indústria farmacêutica. Fiquei sabendo de casos na Flórida em que até latinos sem documentos e pessoas em situações vulneráveis foram recrutadas para suprir o mercado. Vale tudo.
Como é ser um guinea pig?

É chato para caramba. Você não faz absolutamente nada, é um completo tédio. Quando se tem de ficar na clínica por alguns dias, não há nada para fazer. Você pode ver televisão, jogar cartas, ler, usar o computador. O que pega é que você sabe que não deveria estar ali, porque não há um motivo. É como se você estive em um hospital. Uma cobaia me disse uma vez que é como uma pequena tortura. Eu comparo com a profissão de um segurança, não é o trabalho clássico. Você tem um trabalho que não produz nada, fica apenas olhando, observando. Mas, para eles, isso é um trabalho como outro qualquer. E, para a indústria, é essencial que haja a profissionalização.
Por quê?

A indústria, de certa forma, é dependente das cobaias. Se um sujeito fica apenas metade do teste e não o termina, ele interfere com a estatística e com a validade do experimento. A indústria pode perder dinheiro com isso. Há, então, uma pressão para segurar as cobaias até o fim e as profissionais são as pessoas mais seguras para isso. Até a escolha de pagar a pessoa apenas no fim do teste é um reflexo claro disso. E isso gera uma pergunta ética muito importante: será que o dinheiro influencia a percepção de riscos desses sujeitos?
O senhor acredita que, ao ser tratado como um número, uma estatística, a cobaia sofre uma desumanização?

Uma cobaia é um animal. Só por eles se referirem a si mesmos como cobaias já denuncia uma certa animalização, uma desumanização durante os testes. O que eles pensam não importa no processo. Não existe uma pessoa com individualidade fazendo o teste. Nada disso importa. Eles querem você como cobaia, querem o seu corpo, não você enquanto uma pessoa. E isso traz uma alienação.
Reprodução
The Professional Guinea Pig: Big Pharma and the Risky World of Human Subjects
Como não saber, e não se preocupar, com os riscos para a saúde?

Eles têm consciência de que há mais riscos de que de fato sabem. Os testes com remédios psicotrópicos, por exemplo, não são muito bem quistos, porque “mexem com a cabeça”. A preferência é pelas drogas similares as que já existem no mercado, afinal os riscos são conhecidos. Uma vez perguntei à cobaia se ela não se preocupava em participar do teste de uma droga que havia matado um cachorro durante os testes em animais. Ele me respondeu: “Não sou um cachorro e preciso do dinheiro”. 
Existe algum tipo de controle da saúde das cobaias durante os testes?

Existem médicos de plantão e enfermeiras. É tudo muito monitorado. Como as drogas já foram testadas em animais, os efeitos colaterais são um pouco raros. Há três ou quatro anos, umas cinco pessoas ficaram seriamente enfermas. Perderam mãos, visão, mobilidade, foi algo muito sério. Mas um incidente como esse é raro. O que me preocupa é o que pode acontecer daqui a 20, 30 anos. A carga tóxica no organismo é muito grande.
Sobram muitos resíduos no corpo...

E não é só isso. Tem ainda a interação com o ambiente, como respirar um ar não muito puro ou uma contaminação ambiental. Ninguém sabe como o ambiente pode interagir com essas drogas que ficaram no organismo ou mesmo como elas podem interagir entre si. E, acredito, a indústria não sabe porque não tem um registro. E o governo não deve nem ter conhecimento pleno sobre a profissionalização dos cobaias. Eles não têm ideia de que algumas pessoas fazem mais de 100 testes. A indústria optou por não saber de nada disso, do contrário fariam perguntas
Foi da sua experiência como cobaia que surgiu a ideia de escrever um livro?

Depois dos testes, esqueci do assunto. Nunca mais nem pensei sobre isso. Mas, há uns 10 anos, uma voluntária morreu durante um teste na Europa. Isso me chamou muito a atenção. Até então, eu achava que ser cobaia era coisa de desempregado, de gente maluca. Mas, quando ela morreu, minha fica caiu. Ninguém sabe de fato quem são os voluntários, de onde eles vêm, quais são suas motivações ou como é o processo de decisão deles. Eles sabem dos riscos? Ninguém sabia o que estava acontecendo, tudo era feito apenas pelo dinheiro. Com a minha pesquisa, eu descobri algo impressionante, que é a profissionalização da cobaia humana. Acabei indo morar com essas pessoas na Filadélfia. Tem um bairro na cidade com uma concentração bem grande delas, que são, em geral, anarquistas, brancos e homens. Foi assim que começou minha pesquisa.
Há alguma idéia do numero de cobaias existentes ou do dinheiro envolvido nisso?

Na verdade, não. Há um registro que estima cerca de 80.000 testes sendo feitos nos Estados Unidos, mas isso inclui as três fases. Mas eu diria que são milhares de cobaias na fase 1. Não são muitos quando comparados com os sujeitos que fazem a segunda e a terceira etapa [testes em pessoas que têm a doença, para avaliar a eficiência do tratamento]. A verba que eles destinam para o pagamento dos cobaias é irrisória perto do montante total da produção do remédio. A indústria farmacêutica é uma das mais importantes (e rentáveis) dos Estados Unidos.
Você é a favor das cobaias humanas?

Depende do caso. Em testes para drogas que estão sendo criadas apenas para ampliar o mercado, para gerar lucros, eu sou contra. Para que fazer mais testes se já existe medicação similar no mercado? Sou à favor dos genéricos, mas não dos testes para aprovação dessas drogas. Agora, quando falamos de drogas ainda promissoras, que não existem no mercado e que precisam ser testadas, sou favorável aos cobaias humanos. Você não pode fazer o primeiro teste de uma droga nova para o câncer, por exemplo, em um paciente com câncer. Ele está com a saúde psicológica e física muito vulneráveis. Para poupar um guinea pig, que é saudável, dos riscos da primeira fase, você acaba jogando todos os riscos nessa pessoa doente. Isso não é necessário. A dose que você recebe como cobaia é muito maior do que a que você recebe como paciente. O ideal é que se faça menos testes, escolhendo só aqueles que são realmente importantes do ponto de vista científico.
Você acredita em processos de pesquisas alternativos, como o uso de chips no lugar de cobaias?

Não. O corpo humano é muito complexo. Cada indivíduo, cada genética é diferente. Não acredito que seja viável substituir o corpo humano para fazer esses testes. Na verdade, não seria necessário se fosse bem controlado, feito de uma forma ética e justa. Acho até que é mais uma forma de emprego. O ideal mesmo seria um mundo perfeito onde não precisássemos de cobaias profissionais e pagos, mas sim de voluntários. Mas, em um mundo capitalista, esperar por voluntários é o sinônimo de atrasar a pesquisa científica.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler permitiu uma série de experiências científicas forçadas com os prisioneiros dos campos de concentração. Os resultados não podem ser usados em pesquisas feitas hoje. 

E não devem ser usados mesmo. Algumas das pesquisas não tinham fundamento científico algum, era pura maluquice. O que foi feito não é ético.

Os sofrimentos foram em vão? 

Não. Se a pesquisa não foi ética, ela não foi correta. E também não há fundamento científico algum. É importante ter regulamentação, o mundo está muito cruel e desumano. Hoje, também há abusos. As pessoas são coagidas a participarem do experimento por dinheiro. Tira-se vantagem de gente pobre e vulnerável. Mas, em 1970, a Declaração de Helsinki foi assinada para proteger e dar garantias aos cobaias humanas. Agora, por exemplo, o consentimento tem de ser formalizado, há informação sobre os riscos conhecidos e os benefícios possíveis.

FONTE:REVISTA VEJA

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