Salva pela mochila cheia de frutas


Salva pela mochila cheia de frutas

POR PRATICANTE ANÔNIMO 27 AGOSTO 2010 1 COMENTÁRIO
Hoje fui atropelada. A história não é inventada: voltando do supermercado cheia de compras, com uma mochila recheada de frutas, vejo o sinal verde para pedestres, olho para a esquerda e para a direita, nenhum carro. Largo-me despreocupada na faixa de pedestres. Eis que vem um carro com todo o gás, sei lá de onde, e eu penso:
“Ele não vai conseguir parar.  É agora, vou morrer”
É curioso, pois realmente tive tempo de pensar nisso. Vi o carro vindo, mas não deu tempo de correr. Quando me dei conta, tomates rolavam ao meu redor e eu estava atirada no chão, deitada em cima da minha mochila cheia de frutas. Sim, a mochila protegeu minha cabeça de bater no chão. O mamão maduro se espatifou. Se a alimentação saudável não me salvar de ter doenças cardíacas no futuro, pelo menos salvou minha cabeça de bater no asfalto.
Além de uns esfolões e um joelho todo arrebentado, ganhei um beliscão da vida, umlembrete da impermanência. Um lembrete da fragilidade do nosso corpo. Aí veio a pergunta: como está minha prática? Se eu tivesse morrido naquele instante, como passaria pelo bardo da morte?  Quanto já treinei a familiarização com a natureza primordial para conseguir reconhecê-la no bardo alucinatório? Nem preciso dizer o que me respondi… Ganhei mais um tempinho e gás para praticar.
Meus olhos físicos teriam se fechado na esquina da minha casa. Os olhos internos seguiriam. Aliás, seguem.
Contemplar esse fato é crucial. Não precisamos de um carro trombando em nós para nos lembrar disso. Temos o Lama Samten e tantos outros mestres incansavelmente nos lembrando disso o tempo todo: nossa natureza não nasce e não morre. Contemplemos isso!
“Como assim, Lama? Isso é abstrato demais”, perguntamos silenciosamente.
Aí os mestres nos explicam, repetidas vezes, que, ao contemplarmos a dissolução e o renascimento constantes de nossas identidades, começaremos a nos dar conta dessa base construtora incessante, que é a nossa natureza. Nossas identidades nascem e morrem o tempo todo. O tempo todo. Basta contemplarmos para ver. Não vemos, porque não olhamos para isso.
Em nível mais sutil, num mesmo dia temos diferentes inclinações, ideias contraditórias, que vêm e vão, como um risco na água: tão logo aparecem, já somem. No sonho isso fica mais claro ainda: num sopro, mudamos de personagem, de enredo, de país, de mundo, de corpo. Durante a vigília não é diferente, mas temos a sensação que demora mais para as identidades morrerem, e, por isso, damos solidez a elas.
Ao contemplarmos o surgimento e cessação dos inúmeros personagens que assumimos, veremos que há algo que mantém as peças de teatro vivas, que há um palco que aceita qualquer personagem, o tempo todo. Já ouvimos isso que escrevi, aliás, eu estou aqui só papagaiando os mestres. Só escrevo, porque isso está correndo nas minhas veias agora; veias que poderiam estar frias, caso o acidente tivesse sido fatal.
Nesse sentido, um carro te jogando pro ar e não te matando é quase que um lembrete irado e compassivo.  Um favor que Maharaja nos faz. Mas é melhor não precisarmos desses lembretes irados e ficarmos bem atentos ao atravessar a rua.  No caso de nos esquecermos, não precisamos nem nos preocupar, pois Maharaja, o senhor da Roda da Vida, compassivamente nos lembrará das coisas, ainda que doa um pouco o joelho.
Quando me dei conta que eu não havia morrido, abri os olhos: havia um círculo de cabeças sobre mim com um pedacinho de céu no meio delas. As cabeças diziam: não se mexa! Uns ligavam para a ambulância, outros ficavam junto a mim, outros organizavam o trânsito, outros juntavam os tomates e maçãs que rolavam pelo asfalto.  Recuperei a fala e as forças. Vi a motorista que me atropelou em prantos. Ela estava mais nervosa que eu. Abracei-a honestamente, e ela começou a chorar no meu peito. O choro de alguém que estava com pressa, e que não queria ferir ninguém.
O sinal estava verde para ela. O sinal estava verde para mim. Culpa de quem, hein? Podemos até exigir do poder público que melhore o semáforo, o cruzamento, para diminuir os acidentes, mas ainda com o melhor dos cruzamentos, um cidadão de bem, com a mochila cheia de frutas, poderia ter morrido, assim, sem mais nem menos. Como de fato acontece o tempo todoO tempo todo. Sem mais nem menos, e sem culpados.
Os lembretes estão por todos os lados.

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